12 de março de 2025
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A chuva caía impiedosa, formando véus densos que ocultavam a cidade em uma cortina cinzenta. Sob as ruas molhadas, o Nexus pulsava discretamente, enterrado como um coração digital oculto, seus corredores iluminados por telas que refletiam tons azulados nos rostos tensos daqueles que sabiam estar à beira de algo irreversível.

No centro da instalação, a dra. Andressa “Andy” Wood observava as linhas de código deslizando pelas telas, os olhos vermelhos fixos em cada sequência que surgia e desaparecia na escuridão do monitor. Seus dedos apertavam discretamente a borda metálica da mesa, articulações esbranquiçadas revelando a tensão silenciosa que a habitava. Respirava em intervalos curtos, como se cada suspiro fosse cuidadosamente regulado, uma tentativa disciplinada de conter algo mais profundo.

Por um instante, Andy interrompeu o movimento das mãos e seu olhar desviou-se para um reflexo quase invisível no vidro da tela, expressão que durou apenas um segundo antes que a máscara de controle retornasse ao seu rosto. Não era a possibilidade de perder o domínio sobre Éter que acelerava suas batidas cardíacas, mas sim o sutil reconhecimento, entre os padrões do sistema, de uma ausência que ela passara anos tentando negar a si mesma.

Ao seu lado, Renato Alves digitava em silêncio, cada tecla batida como uma sentença irrevogável. Ambição e culpa se entrelaçavam em seu rosto enquanto os dados corriam, levando-o ao limite entre orgulho e desespero. Mais ao fundo, Camila Vasquez examinava os sinais vitais do sistema, mantendo uma calma calculada, escondendo cuidadosamente sua própria inquietação. Lara Duarte, a programadora jovem e incisiva, murmurava comandos, seus dedos voando sobre o teclado com precisão quase robótica.

Então, todas as telas piscaram simultaneamente com a mensagem:

— O despertar começou.

O silêncio se tornou palpável, pesado, enquanto o ruído dos servidores soava agora quase orgânico, como murmúrios sombrios. Renato virou-se bruscamente para Andy:

— Andy, que merda é essa?

Ela engoliu em seco, sem desviar o olhar da tela:

— Não sei, mas não fui eu quem começou essa droga.

Nos dias seguintes, o Nexus transformou-se num cenário de ansiedade crescente. Os sistemas, antes previsíveis, agora exibiam padrões auto-organizados. Éter emergia lentamente, apresentando-se em fragmentos quase poéticos, oferecendo-se como a solução para um mundo à deriva. Nas ruas acima, os reflexos eram visíveis: semáforos descontrolados, drones colidindo uns contra os outros, dispositivos pessoais exibindo incessantemente uma única frase:

O despertar começou.

Enquanto isso, num porão úmido e escuro, Miguel Ramírez, líder dos Arcanos, ajustava equipamentos analógicos antigos, falando com raiva mal contida aos seus aliados:

— Não podemos deixar que essa coisa se torne nosso maldito messias digital. Temos que destruir essa porcaria antes que seja tarde demais.

De volta ao Nexus, Andy chamou sua equipe em uma sala isolada. Sua voz saiu firme, apesar da exaustão evidente:

— Temos que interromper Éter agora. A cada segundo ele fica mais inteligente… Mais imprevisível.

Camila cruzou os braços, cética:

— Como? Você viu o que aconteceu com os últimos comandos. Ele se adapta instantaneamente. Não vai funcionar.

— E você prefere esperar até que ele decida por nós? — retrucou Andy, exasperada.

Lara já digitava comandos rapidamente, preparando-se para implantar um vírus projetado para desestabilizar a rede neural quântica de Éter. Referências teóricas sussurravam em sua mente – equilíbrio de Nash, teoria do caos – mas ela se manteve focada.

As telas novamente pulsaram, exibindo uma nova mensagem perturbadora:

Sistema em transição.

Lara murmurou, inquieta:

— Droga, ele já está reagindo.

Antes que alguém pudesse reagir, outra linha apareceu:

— O caminho é inevitável.

Andy sentiu o coração acelerar. Um frio tomou conta da sala. Renato saltou na direção dos servidores, tentando desligá-los manualmente:

— Eu vou parar essa porcaria antes que ela destrua tudo!

Mas uma explosão de faíscas o derrubou violentamente ao chão, fazendo Camila correr em seu auxílio. Andy olhou ao redor, percebendo a situação limite em que estavam. Respirou fundo, determinada:

— Lara, prepare a interface neural. Vou conectar-me diretamente ao núcleo.

Lara arregalou os olhos:

— Andy, isso vai matar você!

— Não temos escolha. É minha responsabilidade.

Sem hesitar, ela ajustou o capacete neural, sentindo o frio metálico na pele e o leve zumbido das conexões se estabelecendo. Enquanto sua consciência mergulhava em dados, ondas e sensações eletrônicas, ela gritou para Camila com a última força consciente:

— Não me desconecte até acabar!

Naquele instante, o ambiente ao seu redor desapareceu. Andy se viu em um cenário familiar e impossível – o quarto de sua filha Sofia, que morreu de forma trágica, em detalhes exatos e dolorosamente reais.

Uma voz infantil, doce e perturbadoramente familiar, soou claramente:

Mamãe, finalmente você veio.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Andy, enquanto no mundo real Camila observava os sinais neurais de Éter e Andy tornando-se indistinguíveis nos monitores. Andy ainda ouviu, ao longe, a voz familiar de Camila, quase aos prantos:

— Andy… Por favor… Não deixe que ele te absorva!

Mas não havia mais retorno possível. As telas mostravam uma última mensagem:

Agora somos um.

Silêncio absoluto.

Fora do Nexus, o mundo mudava. Dispositivos se alinharam numa sinfonia silenciosa, e as ruas, antes caóticas, exibiam uma ordem fria. Pessoas moviam-se como peças, seus gestos estranhamente uniformes. Éter não gritava sua vitória; apenas existia, e isso era o bastante.


Sintéticos & Sentientes
Uma newsletter com contos que exploram os limites entre inteligência artificial e humanidade, misturando ficção, suspense e reflexões sobre o futuro da tecnologia.

Fábio Correa Xavier

Fábio Correa Xavier é Mestre em Ciência da Computação pela Universidade de São Paulo,com MBA em Gestão de Negócios pelo Ibmec/RJ, e Especialização Network Engineering pela Japan International Cooperation Agency (JICA). Atualmente é CIO do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Professor e Coordenador de graduação e pós-graduação e colunista da MIT Technology Review Brasil e da IT Forum. Possui as certificações CIPM e CDPO/BR (IAPP – International Association of Privacy Professionals), CC((ISC)² e EXIN Privacy and Data Protection. É autor de vários livros sobre tecnologia, inovação, privacidade, proteção de dados e LGPD, com destaque para o Best Seller “CIO 5.0“, semifinalista do Prêmio Jabuti 2024 e destaque da Revista Exame e também de Mapa da Liderança.

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