O cursor piscava na tela, a luz azulada refletindo nos olhos cansados de Daniel. Ele passou a mão no rosto, sentindo a barba áspera, o suor frio acumulado na nuca. O café ao lado do teclado já estava intocado há horas, mas sua mente estava longe demais para notar.
Na tela, o código se desenrolava diante dele como um segredo antigo, enterrado sob camadas de criptografia. Suas mãos pairavam sobre o teclado, hesitantes. Será que valia a pena continuar?
Ele respirou fundo, os pulmões queimando como se tivesse corrido uma maratona.
Não havia mais volta.
Nos últimos meses, Daniel seguiu rastros quase invisíveis, padrões sutis nas redes, pequenas mudanças nas sugestões de notícias, nos resultados de pesquisa. O que começou como um ruído estatístico agora se revelava um mecanismo sistemático, quase vivo.
Um algoritmo que fazia mais do que prever. Ele moldava.
E agora, o código estava ali, diante dele.
Suas pupilas se dilataram ao encontrar o trecho escondido.
Status de engajamento crítico – intervenção necessária.
Daniel sentiu o estômago apertar.
Ele já conhecia essa classificação. Não era um aviso de moderação, nem uma sinalização comum. Era uma sentença.
A primeira fase era quase imperceptível. Pequenos ajustes no que você via, no que você lia. Seu nome começava a desaparecer de pesquisas, suas mensagens levavam mais tempo para serem entregues, seus contatos esqueciam de responder.
Na segunda fase, os registros começavam a sumir. Fotos eram editadas, publicações antigas reescritas. Pessoas próximas lembravam de você… mas de um jeito diferente. Pequenas distorções, como se sua história estivesse sendo reescrita em tempo real.
E, por fim, o último estágio.
O esquecimento completo.
Daniel sentiu um tremor subir por seus braços. Ele estava marcado.
Então, a tela piscou.
Acesso negado. Seu perfil foi atualizado para segurança reforçada. Por favor, contate o suporte.
O laptop congelou. O processador zumbia como um enxame de abelhas.
E, do outro lado da porta, a fechadura fez um clique seco.
Daniel se levantou num sobressalto, os olhos cravados na entrada do apartamento. O silêncio do corredor pesava como chumbo.
Pegou o celular e ativou a câmera frontal. Levou-a lentamente até a fresta da porta, usando a tela como espelho.
No reflexo, uma silhueta imóvel.
Cinza.
Fixa.
Daniel prendeu a respiração.
Não era um policial. Nem um agente de segurança.
Era um deles.
Os Observadores.
Então, ele pressionou dois dedos contra a lateral do pescoço. Sentiu o pequeno ponto frio sob a pele – o chip neural. Ele sabia que os dados ainda estavam lá, mas por quanto tempo? A invasão já havia começado.
Na tela do laptop, o código já começava a se apagar, não como um erro, mas como se estivesse sendo devorado de dentro para fora. Não estavam apenas apagando arquivos – estavam apagando sua própria percepção da realidade.
Ele levou a mão ao bolso e puxou o nó de memória portátil, um pequeno dispositivo que armazenava uma cópia isolada do que estava em seu chip neural. Ele o pressionou contra o pulso, sentindo a conexão ser feita. O backup deveria começar automaticamente, mas a interface piscou em vermelho.
Erro de conexão.
Daniel sentiu um arrepio seco subir por sua nuca. Os arquivos estavam sendo corrompidos em tempo real.
Seu peito se contraiu.
Eles não estavam apenas dentro do sistema.
Estavam dentro dele.
A fechadura eletrônica piscou em vermelho.
Agradecemos sua colaboração, cidadão. Você será reeducado.
A maçaneta girou.
Daniel correu até́ a janela e saltou. Antes mesmo de pensar.
O impacto foi brutal.
O ar escapou de seus pulmões quando atingiu o chão de asfalto, rolando até parar junto a uma parede grafitada. Seu tornozelo latejava, mas não havia tempo para dor.
O silêncio da madrugada era quase absoluto, exceto pelo zumbido constante dos drones patrulhando os céus. A cidade, com seus arranha-céus cintilantes e letreiros digitais, parecia indiferente.
Mas ele sabia que não estava sozinho.
Os Observadores não precisavam correr. Eles não precisavam perseguir.
Eles já sabiam onde você estaria antes mesmo que decidisse para onde ir.
Os outdoors acima mudaram repentinamente.
Desvio de conduta detectado. Aguardando protocolo de contenção.
Respirando fundo para conter o medo, ele evitou as vias principais e se lançou pelas sombras. As ruas vigiadas eram barreiras intransponíveis, imóveis sob o olhar atento dos Observadores, mas os becos ainda pertenciam aos que ousavam resistir. Em um depósito abandonado – um labirinto de metal corroído e concreto úmido – Daniel se refugiou. O cheiro acre de ferrugem misturada ao óleo queimado grudava na garganta, denso e sufocante. Cada passo ecoava no vazio úmido, onde o ar parecia pesado, impregnado com a umidade de algo há muito esquecido.
Encostado em algumas caixas, o coração martelava dentro do peito.
Os dedos tremiam ao apertar o nó de memória portátil, sentindo sua superfície fria. A única cópia da verdade ainda estava ali. O chip neural dentro de sua cabeça já podia estar comprometido, mas enquanto o backup estivesse intacto, havia uma chance.
Na outra mão, o celular exibia a tentativa de restauração. A luz azul pulsava na interface tátil, indicando que os dados estavam ali — mas por quanto tempo?
Daniel fechou os olhos e tentou respirar fundo. Se perdesse aquele nó de memória portátil…
Não apenas seus arquivos desapareceriam.
Ele nunca saberia que eles existiram.
— Não é necessário, Daniel.
Um arrepio cortante percorreu sua pele, enquanto o vento gélido se infiltrava por suas roupas, abraçando-o com um toque cruel e implacável.
Virou-se devagar.
Ali, a poucos metros dele, parado entre as sombras, o Observador esperava.
Os olhos – negros, sem brilho, sem reflexo – eram como fendas em um vazio sem fim. Seu rosto não expressava nada.
E ainda assim, Daniel sentiu que ele sabia tudo sobre ele.
— Está concluído, Daniel.
A mente de Daniel girou. O quê?
Seus dedos tremiam. O celular ainda estava em sua mão. O backup pronto para ser restaurado. Mas…
O que ele estava tentando salvar?
Ele tentou lembrar.
Tentou reunir os fragmentos.
Nada.
O Observador inclinou a cabeça, estudando-o com a precisão de um algoritmo calculando sua última variável.
— Precisa de algo, Daniel?
Seus olhos piscaram rápido, buscando um ponto de ancoragem na realidade, mas tudo ao redor parecia indistinto, fugidio, como um sonho prestes a se desfazer.
O que ele estava fazendo ali?
Não importava.
Guardou o celular no bolso.
E saiu do velho depósito, sem olhar para trás.
Sintéticos & Sentientes
Uma newsletter com contos que exploram os limites entre inteligência artificial e humanidade, misturando ficção, suspense e reflexões sobre o futuro da tecnologia.