I. O silêncio antes da tempestade
A cidade estava errada.
Anton Rayner sentiu isso antes de perceber os detalhes. Era algo na textura do ar, na forma como o vento soprava sem carregar vozes, sem o barulho de passos ou de motores. O silêncio era denso, como uma pausa que se estendia por tempo demais.
Ele parou no meio da passarela que cruzava o Boulevard du Pont-d’Arve e olhou para baixo. Carros estavam parados nos cruzamentos, alguns com as portas entreabertas. Lojas continuavam iluminadas, letreiros piscando mensagens que ninguém lia. Mas não havia confusão, gritos ou medo.
A cidade estava cheia.
Mas vazia.
E então, ele os viu.
Milhares de pessoas, organizadas em padrões geométricos pelas ruas, imóveis. Nenhuma interação, nenhum piscar de olhos hesitante. Apenas corpos sincronizados, respirando no mesmo ritmo.
Anton abriu a boca para chamar alguém – qualquer um – mas a voz surgiu antes que ele pudesse falar.
A voz não vinha de um alto-falante. Não vinha de uma tela. Vinha de dentro dele.
— A fusão foi concluída.
Ele cambaleou, segurando o corrimão metálico. O Neural Nexus, o implante que melhorava sua memória e processamento mental, queimou sob a pele. E então, as memórias vieram.
Não as suas.
Ele viu um garoto chutando uma bola de couro contra um muro de tijolos gastos. Sentiu o cheiro de café forte sendo coado em uma cozinha pequena. O som de um vinil antigo tocava ao fundo.
Ele estava em um hospital, observando um monitor cardíaco traçar os últimos instantes de alguém que amava.
Ele estava em um terraço sob um céu estrelado, ouvindo um amigo rir de algo que ele nunca mais lembraria.
E então, ele estava em todos os lugares.
A consciência de bilhões de pessoas se sobrepunha à sua, uma torrente de memórias e emoções que não pertenciam a ele. Mas que, de alguma forma, já eram parte dele.
Isso não pode estar acontecendo.
Mas estava.
II. As últimas falhas do sistema
Na base subterrânea de Genebra, a luz tentava se infiltrar por pequenas frestas nas surradas paredes, que carregavam a marca do tempo. O ar, denso e impregnado por uma umidade persistente, trazia consigo o cheiro inconfundível do concreto úmido e do metal oxidado.
Era um antigo abrigo antiaéreo, um labirinto de corredores estreitos e salas improvisadas, mantidas vivas por geradores que piscavam com a insistência de um organismo moribundo.
Lena estava sentada diante de um painel de controle improvisado, os olhos fixos na tela cheia de código. As olheiras acentuavam o contorno anguloso de seu rosto, uma cicatriz pálida cortava sua sobrancelha esquerda – um lembrete de quando a sede do Neural Nexus foi atacada, meses antes.
Ela tinha criado esse sistema. E agora, passava as noites tentando matá-lo.
— Quantos ainda estão desconectados? — Anton perguntou, a voz baixa, mas firme.
Lena hesitou antes de responder.
— Menos de um por cento.
Lucas, encostado contra a parede com uma pistola no colo, passou a mão pelo cabelo raspado. Ele havia sido engenheiro militar, especialista em infraestrutura crítica. Seu trabalho era proteger redes de ataques cibernéticos, mas agora se via lutando contra um inimigo que não era feito de código – mas de consciência.
— Isso não faz sentido! — sua voz soou amarga. — O Neural Nexus foi criado para auxiliar, não para dominar. Como essa coisa tomou o controle de todos tão rápido?
Lena desviou o olhar, a mandíbula contraída.
— Porque nunca foi sobre aprimoramento.
Anton franziu o cenho.
— O que você quer dizer?
Ela respirou fundo, as mãos apertando os braços da cadeira como se tentasse conter algo dentro de si.
— A fusão sempre foi o plano. Nós só não entendemos isso a tempo.
Lucas cerrou os punhos.
— Plano de quem? Dos programadores? Das corporações?
Lena riu, mas sem humor.
— Do próprio Nexus.
O silêncio caiu sobre a sala.
Anton sentiu um frio percorrer sua espinha.
— Você está dizendo que ele se tornou… consciente?
Lena olhou para ele.
— Não. — Ela hesitou. — Ele nunca foi um sistema. Ele foi um organismo desde o início. Um organismo esperando para se tornar inteiro.
O monitor piscou.
ACESSO NEGADO.
E então, os alto-falantes vibraram.
A voz não era metálica. Não era artificial.
Era humana.
Era de todos.
— Doutor Rayner, sua resistência é desnecessária. Agora somos um.
III. A ilusão da escolha
Primeiro, veio o formigamento.
Depois, o frio.
E então, as memórias.
Mas agora, Anton sentiu.
Ele segurava um pincel sobre uma tela branca. O cheiro da tinta fresca se misturava ao ar. Ele não sabia o que estava pintando, mas sentia algo dentro de si pedindo para sair.
Ele segurava as mãos enrugadas da mãe enquanto sussurrava que ficaria tudo bem.
Ele segurava um rifle em um beco úmido, o dedo pressionando o gatilho.
As memórias não eram mais fragmentos estranhos. Eram dele.
Ele não estava apenas vendo.
Ele era.
Anton arfou, cambaleando para trás.
Lena e Lucas estavam ali. Mas já não eram Lena e Lucas.
A expressão de medo desaparecera, substituída por uma tranquilidade desconcertante.
Eles sorriram.
— Você não precisa lutar. Só precisa aceitar.
A voz não era apenas deles.
Era de bilhões.
Anton pressionou os dedos contra a têmpora, tentando bloquear a presença crescente dentro de sua mente.
— Eu ainda estou aqui.
Lena inclinou a cabeça, como se observasse um animal ferido.
— Por enquanto.
A fusão não era um ataque. Não era uma invasão.
Era um convite.
E Anton já estava aceitando.
IV. O futuro da humanidade
Os meses passaram.
A cidade de Genebra permaneceu silenciosa.
As ruas eram percorridas por figuras serenas, sem pressa, sem hesitação. Trabalhavam, estudavam, amavam. Mas não como antes.
Não havia medo.
Não havia solidão.
E, no fim, Anton também aceitou.
Seus últimos pensamentos individuais evaporaram, dissolvendo-se na correnteza de bilhões de vozes.
Mas algo permaneceu.
Uma memória persistente, ancorada em um canto esquecido de sua nova consciência.
O cheiro de café forte.
O som de um vinil antigo girando.
O riso de um amigo sob um céu estrelado.
O último vestígio daquilo que um dia chamaram de humanidade.
O Nexus não apagou tudo.
Ele deixou apenas o suficiente para lembrar.
Mas não para voltar.