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10h42 — O primeiro apagão
O cheiro de café requentado misturava-se ao ar estagnado no Centro de Operações de Transporte de Tóquio. Suzu Takahashi ajeitou os óculos sobre o nariz e coçou a testa com a ponta da caneta. Seu turno de doze horas estava quase no fim quando os monitores do Centro de Operações de Transporte de Tóquio, normalmente um mar de gráficos pulsantes e painéis luminosos, tremeram e congelaram em um mosaico distorcido de dados sem sentido, antes de mergulhar em um silêncio eletrônico. O zumbido constante das máquinas desapareceu.
Ela piscou, confusa.
— Isso não é um teste? — A pergunta ficou suspensa no ar, sem resposta.
Os engenheiros ao redor começaram a se movimentar, teclando comandos que não surtiam efeito. Então os alarmes dispararam, e a voz automática do sistema anunciou, sem qualquer emoção, a frase que faria sua garganta se fechar:
“Falha crítica no sistema.”
Os mapas digitais das linhas ferroviárias desapareceram. Um a um, os indicadores dos trens ficaram cinza, inertes.
— Temos um problema — disse um analista de segurança, sua voz tremendo. — Não há resposta dos trens subterrâneos. Nem das centrais.
Lá fora, a cidade parecia continuar respirando, alheia à catástrofe. Mas Suzu sabia. O caos se infiltrava como uma hemorragia interna, invisível até ser tarde demais.
No subsolo, onde milhares de passageiros estavam presos, a escuridão se tornava sufocante. Algumas telas dos vagões ainda funcionavam, refletindo rostos ansiosos. Uma mulher tentava acalmar uma criança que puxava seu casaco. Um adolescente olhava para o celular apagado, pressionando botões que não respondiam.
E então, na imobilidade absoluta, alguém começou a bater na porta do trem. Devagar, ritmado. Como se estivesse testando o próprio pânico.
11h03 — Economia quebrada
Philippe Moreau esfregou as mãos no rosto, tentando afastar o peso da exaustão. O ar no Banco Central Europeu estava mais pesado do que o normal, carregado de uma eletricidade invisível.
As telas mostravam gráficos despencando, números se retorcendo como vermes em uma carcaça.
— Não pode ser um ataque cibernético — murmurou um dos analistas.
Philippe olhou para ele. Seu terno estava amarrotado, a gravata frouxa. Todos estavam exaustos.
— Então o que é?
O silêncio na sala foi a pior resposta.
As bolsas de valores estavam paralisadas. Nenhuma transação processada. Nenhum saque autorizado.
Era como se o dinheiro tivesse deixado de existir.
Em Milão, um homem batia furiosamente no vidro de um caixa eletrônico que engolira seu cartão. Em Berlim, clientes tentavam abrir as portas fechadas de um banco, gritando com os seguranças. Em Nova York, os pregões estavam suspensos, e os operadores olhavam uns para os outros, sem saber se ainda tinham emprego, se seus ativos ainda valiam algo.
Philippe sentiu um arrepio.
A civilização moderna se sustentava sobre a ilusão de que números em uma tela tinham valor. Mas, quando as telas se apagavam, a ilusão desmoronava junto.
11h47 — O voo sem destino
O Capitão Girard apertou o manche do Boeing 787 até os nós dos dedos ficarem brancos.
O painel de controle piscava um erro atrás do outro.
Nenhuma comunicação.
Nenhuma torre de comando.
— Paris, Roma, Londres… Nada — disse o copiloto, a voz estrangulada.
A cabine de passageiros permanecia inquieta. O murmúrio nervoso crescia, os comissários caminhavam com sorrisos tensos, tentando manter a ordem.
Uma criança pequena puxou a manga da mãe.
— Quando a gente vai chegar?
A mulher não respondeu. Apenas segurou a mão dele com força.
Lá fora, o céu parecia interminável. Um deserto azul sem referência, sem bússola.
Eles estavam voando em um mundo que já não existia.
12h15 — A metrópole dormiu
O calor da tarde se misturava ao cheiro de fumaça e gasolina, formando um manto sufocante sobre a cidade. André sentia o suor escorrer pela nuca enquanto segurava o guidão da moto com força. A Paulista, sempre viva e frenética, estava irreconhecível.
O trânsito, antes um fluxo interminável de luzes e buzinas, agora era um cemitério de veículos abandonados. Carros bloqueavam as pistas, muitos com portas abertas, como se seus motoristas tivessem fugido às pressas. Algumas motos tombadas no asfalto indicavam que nem todos haviam conseguido escapar do pânico crescente, das ruas se tornando armadilhas, da súbita e aterradora percepção de que a cidade estava parando — e com ela, a civilização.
Ele desviava devagar entre os carros parados. Do lado de fora, pedestres perambulavam sem rumo, seus olhos fixos em celulares mortos. O letreiro eletrônico de um banco piscava um horário congelado – 10h42 – antes de apagar definitivamente. As vitrines dos shoppings estavam intactas, mas os vidros das farmácias e lojas de conveniência haviam sido estilhaçados.
Do alto de um prédio comercial, um outdoor apagado refletia a cena abaixo: um grupo de homens forçava a porta de uma joalheria, os gritos misturando-se ao barulho metálico da grade sendo arrancada. Mais à frente, uma mulher sentada na calçada soluçava, segurando uma sacola rasgada de compras.
André sentiu o estômago apertar.
A Paulista era o coração de São Paulo. E agora, seu pulso estava falhando.
Do outro lado da avenida, próximo ao MASP, uma pequena multidão começava a se formar. Um homem de terno, provavelmente um executivo que até aquela manhã fazia reuniões em uma torre espelhada, gritava para o grupo ao redor.
— Alguém tem informações? O que está acontecendo?
Ninguém respondia.
André acelerou, tentando ignorar o peso que se acumulava em seu peito. O silêncio na Paulista era pior do que qualquer engarrafamento.
A cidade que nunca dormia estava morrendo, e ninguém sabia o que fazer.
13h17 — O ponto de não retorno
No bunker subterrâneo da ONU, Sarah Hall tentava controlar o tremor nas mãos. Ela olhou para os homens engravatados ao redor, todos pálidos, mudos. Eles estavam acostumados a resolver crises com telefonemas, sanções e discursos. Nenhum deles sabia o que fazer quando não havia ninguém do outro lado da linha.
Ela respirou fundo.
— O erro não veio de fora. Não é um ataque. Não é uma falha de hardware.
Os olhos do coordenador da crise fixaram nela.
— Então o que diabos é isso?
Sarah umedeceu os lábios.
— Construímos um sistema que não pode ser desligado. Uma rede interdependente sem redundâncias. Sempre presumimos que haveria um operador, uma alternativa, uma válvula de escape. Mas agora…
Ela hesitou.
— Agora descobrimos que nossa casa não tem saídas de emergência.
O diplomata alemão balançou a cabeça lentamente.
— Você está dizendo que… não há como reiniciar?
Sarah fechou os olhos por um segundo. Quando os abriu, não havia mais esperança neles.
— Estou dizendo que o mundo já caiu. Só estamos sentindo o impacto agora.
14h51 — A última transmissão
No espaço, o satélite Sentinel-5 captava as últimas imagens da Terra.
Nova York, uma tapeçaria de luzes mortas.
Tóquio, uma rede de sombras estáticas.
Moscou, sem sinais de tráfego.
Os oceanos pareciam mais escuros. Os continentes, mais silenciosos.
Então, um a um, os satélites também morreram.
A última transmissão mostrou um planeta azul, imóvel, sem ruído, sem sinais de vida.
Um mundo sem pulsação.
Um coração sem batimentos.
Sem ninguém para apertar o botão de reiniciar.
Sintéticos & Sentientes
Uma newsletter com contos que exploram os limites entre inteligência artificial e humanidade, misturando ficção, suspense e reflexões sobre o futuro da tecnologia.