Publicado originalmente no MIT Technology Review em 08/07/2021.
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É consenso entre especialistas que as novas tecnologias — especialmente a Inteligência Artificial — irão mudar radicalmente o mercado de trabalho no futuro, criando novas funções e eliminando outras por meio da robotização e automatização. Ciente dessa realidade, no último dia 06 de abril, foi publicada a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), por meio da Portaria nº 4.617 do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Uma das fases da construção da EBIA foi a contratação de consultoria especializada, por meio de Projeto de Cooperação Técnica Internacional junto à UNESCO, para realizar estudo sobre os potenciais impactos sociais e econômicos da Inteligência Artificial e a apresentação de propostas para mitigar seus efeitos negativos e maximizar os efeitos positivos.
Além disso, dos seis eixos verticais que definem as áreas prioritárias para a condução da política de IA, dois são diretamente relacionados à formação do trabalhador para o mercado de trabalho do futuro:
Educação — que visa a qualificar e preparar as futuras gerações para as mudanças oriundas das tecnologias disruptivas;
Força de Trabalho e Capacitação — que objetiva preparar os trabalhadores atuais para a transformação digital do mercado de trabalho, com a substituição de ocupações pela automatização e o surgimento de novas funções.
A transformação digital é fundamental para que o país se torne cada vez mais competitivo na economia mundial. Contudo, no cenário atual, é possível notar que há dois grandes desafios a serem superados em relação ao mercado de trabalho do futuro: a formação das novas gerações e a requalificação dos atuais trabalhadores.
Formação da nova geração para um futuro cada vez mais digital
Podemos pensar que os nativos digitais não teriam dificuldade em se preparar para as profissões do futuro, uma vez que já convivem com a tecnologia desde muito cedo. Contudo, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apresentou um relatório afirmando que boa parte dessa nova geração tem dificuldades para “compreender nuances ou ambiguidades em textos online, localizar materiais confiáveis em buscas na internet ou em conteúdo de e-mails e redes sociais, avaliar a credibilidade de fontes de informações ou mesmo distinguir fatos de opiniões”. Essa situação, aliada à grande quantidade de ataques cibernéticos, coloca essa geração como um alvo fácil para fake news e cibercriminosos. E como prepará-los para o mercado de trabalho do futuro?
O ensino de tecnologia deve começar cedo. Assuntos como segurança da informação, privacidade, proteção de dados pessoais, navegação segura, novas tecnologias como Inteligência Artificial, Big Data e programação devem ser inseridas no currículo básico, desde o ensino fundamental. Além disso, as universidades devem se preparar para receber esse público e adaptar seus currículos às necessidades do setor produtivo, que está em acelerado processo de transformação digital. Os pesquisadores Ebru Yilmaz Ince e Mustafa Koc fizeram uma análise sobre os benefícios do ensino de programação e robótica no ensino fundamental e médio. Eles concluíram que essa aprendizagem, além de divertida, contribuiu para melhorar significativamente as habilidades de “pensamento computacional” dos alunos e aumentou o interesse deles por tecnologia.
Em consonância com especialistas do mercado, o Tribunal de Contas da União estima que até 2030 a Inteligência Artificial e a robótica substituirão três de cada dez postos de trabalho tradicionais hoje existentes, criando outros, que exigirão alto grau de especialização. O TCU realizou um levantamento junto às Instituições Federais de Ensino Superior para averiguar a aderência dos cursos ofertados frente às necessidades impostas pela transformação digital no setor produtivo. Os resultados foram preocupantes, pois identificou-se problemas na infraestrutura das Instituições, além do fato de que “o órgão central da política pública educacional não possui política centralizada que abarque ações de fomento, capacitação de docentes, fórum institucionalizado de comunicação entre setores acadêmico e produtivo, definição de recursos tecnológicos prioritários e financiamento de infraestrutura tecnológica, entre outros temas fulcrais para o aperfeiçoamento dos cursos em função da transformação digital”. Constatou-se, por exemplo, que somente 33% das instituições de ensino possuem internet banda larga. Outra constatação importante é que as ações de articulação com o setor produtivo, com vistas ao aperfeiçoamento de cursos e à capacitação do corpo docente, têm se apresentado mais como iniciativas pontuais do que uma política institucionalizada nas instituições federais analisadas. Se a academia vive apartada do setor produtivo, como os egressos dessas instituições estarão aptos a enfrentar a nova realidade do mercado de trabalho?
Requalificação dos trabalhadores analógicos para um mercado em transformação
O processo de transformação digital pelo qual as empresas estão passando não tem mais volta. Uma pesquisa da SambaTech e Samba Digital, em 2021, constatou que 62,5% das empresas brasileiras vão investir entre 10% e 30% do faturamento em transformação digital. As tecnologias que mais receberão esses investimentos são analytics (62%), computação em nuvem (46%), arquitetura de sistemas (40%), Inteligência Artificial (38%) e biometria facial (8%). Walton Alencar Rodrigues – ministro do TCU, relator do levantamento feito junto às Instituições Federais de Ensino Superior, anteriormente citado – afirmou que profissionais sem aptidão para utilizar tecnologias digitais estão fadados à obsolescência e ao desemprego e se tornarão os “analfabetos do futuro”.
Para entender realmente qual é o impacto dessa evolução no mercado de trabalho, pesquisadores do Centro de Estratégia e Competitividade da Escola de Economia de Estocolmo, na Suécia, avaliam que é necessário analisar a tecnologia em cinco áreas de capacidade: percepção sensorial, capacidades cognitivas, processamento de linguagem natural, capacidades emocionais e sociais e capacidades físicas. Os autores concluem que, apesar do substancial progresso feito nas cinco áreas, diversas capacidades ainda estão fora do alcance das tecnologias disponíveis. Especificamente, a tecnologia ainda necessita de desenvolvimento para processar e gerar linguagem natural — principalmente de caráter social e emocional — mobilidade autônoma, habilidades motoras finas e uma diversidade de capacidades cognitivas. Assim, profissões que necessitam dessas habilidades estão, neste momento, a salvo da substituição. Por outro lado, a tecnologia teve um desempenho excelente em áreas como reconhecimento de padrões, habilidades motoras grossas e navegação e está em grande parte no mesmo nível dos humanos no campo da percepção sensorial.
Após essa avaliação do estado da arte da tecnologia, os autores citam o estudo de Levy e Murnane, que classificou os tipos de trabalho em 4 grupos: tarefas rotineiras manuais, tarefas rotineiras não-manuais, tarefas não rotineiras manuais e tarefas não rotineiras não manuais. Nesse sentido, os autores concluíram que as tarefas rotineiras são facilmente substituídas pela tecnologia, ao contrário de tarefas não rotineiras, especialmente aquelas que não requerem interação humana.
Nesse contexto, a participação das empresas no processo de requalificação dos trabalhadores é de vital importante. Thomas Davenport e George Westerman, no artigo How HR Leaders Are Preparing for the AI-Enabled Workforce publicado no MIT Sloan Management Review, apresentam quatro estratégias adotadas pelas companhias para enfrentar esse desafio:
Não fazer nada, alegando, além de outras prioridades, que a velocidade das mudanças é mais lenta do que a previsão e que há muita incerteza sobre o prognóstico, o que aumenta a chance de tais prognósticos estarem errados;
Desenvolver habilidades digitais em seus colaboradores, especialmente aqueles mais vulneráveis à substituição;
Prever tendências para o futuro do trabalho, analisando a estrutura da própria empresa para identificar os cargos que poderiam ser afetados pela IA considerando também as estratégias e produtos de cada organização;
Ajudar os colaboradores a assumirem a responsabilidade por seus próprios futuros, dando alternativas e indicando o caminho — treinamentos, habilidades e conhecimentos necessários — para que eles se capacitem para o novo mercado.
Admirável (ou não) mundo novo
O uso adequado da tecnologia, especialmente da Inteligência Artificial, é sem dúvida um grande diferencial competitivo no cenário mundial. Contudo, seu uso ético e a delegação de decisão para uma máquina ainda são temas polêmicos. A Lei Geral de Proteção de Dados (13.709/18) tenta endereçar tal questão dispondo sobre o direito de titulares solicitarem a revisão das decisões automatizadas de dados pessoais, quando estas afetam seus interesses, incluindo o mapeamento de perfil pessoal, profissional, de consumidor e crédito, bem como quaisquer aspectos da personalidade da pessoa. Fato é que a transformação digital está trazendo consigo a democratização da tecnologia. O Gartner estima que, até 2024, 80% dos produtos e serviços de TI serão desenvolvimentos por profissionais que não são da área de tecnologia das empresas. Isso só será possível, claro, se os colaboradores das empresas estiverem preparados e reforça ainda mais a necessidade de requalificação e adequada formação de todos. E mais que isso, o setor produtivo está (e continuará) em constante evolução e é necessário que se crie uma cultura de lifelong learning environment, ou seja, que o aprendizado seja constante ao longo da vida, para que os trabalhadores possam se adaptar às mudanças e se manterem atrativos aos olhos do mercado.
A EBIA é um bom começo para tratar adequadamente no âmbito nacional as transformações que a tecnologia trará à vida de todos. Mas é preciso fazer o plano sair do papel e se transformar em resultados em benefício da sociedade. Para isso, é capital que haja uma forte parceria entre o governo e os diversos atores do mercado, setores que serão beneficiados pelo uso massivo da Inteligência Artificial. Sem esquecer, claro, que o ser humano ainda é o ingrediente mais importante e o centro dessa verdadeira revolução digital.